Editora Record – “Diário do Conde d’Eu”, organização de Rodrigo Goyena Soares

 

“Diário do Conde d’Eu”, organização de Rodrigo Goyena Soares

Por Rafael Sento Sé

 

“Foi uma luta obstinada: Pedra, que comandava a infantaria foi ligeiramente ferido por um golpe de lança que parou com o braço. Desde a manhã, as granadas passavam por cima de nossas cabeças e, amiúde, as balas de fuzil, perto de nossas orelhas. Quando granadas explodiam perto de mim, rapidamente se formava coro em meu Estado-Maior”. A viva descrição da Batalha de Campo Grande, pródiga em detalhes, integra o diário de campanha do Conde d’Eu, que comandou as tropas brasileiras no último ano da Guerra do Paraguai. Escrito em francês, língua-materna do marido da Princesa Isabel, o documento permaneceu inédito, recolhido no arquivo do Museu Imperial, por quase 120 anos. Encontrado pelo historiador e cientista político carioca Rodrigo Goyena Soares, especialista no estudo do conflito, o documento chega às mãos dos leitores em edição ilustrada e cuidadosamente anotada pelo pesquisador. Diário do Conde d’Eu – Comandante em chefe das tropas brasileiras em operação na República do Paraguai (Paz & Terra) lança nova luz sobre a própria imagem do autor do relato de campanha, bem distante do militar facínora que conservadores e liberais republicanos, polos opostos do espectro político de então, chegaram a lhe incutir.

O historiador Rodrigo Goyena Soares, que resgatou um dos raros diários escrito no calor dos acontecimentos da guerra, assina um artigo crítico repleto de citações a correspondências trocadas entre o príncipe consorte com seu sogro, D. Pedro II, e figuras proeminentes do Império que ajudam a compreender as consequências da guerra para o Brasil. Ao mesmo tempo que representou o apogeu do governo monárquico, o conflito também marca o início de seu declínio com o surgimento do Exército como força política, em meio à disputa entre a elite escravocrata e abolicionistas que gozavam da simpatia do Conde D’Eu, entre estes o engenheiro André Rebouças e o escritor Joaquim Manuel de Macedo, citados frequentemente ao longo deste lançamento essencial da editora Paz & Terra, do Grupo Editorial Record. A obra traz ainda prefácio de Ricardo Salles e posfácio de Lilia Moritz Schwarcz.

Naquele momento, na segunda metade do século XIX, emergem ainda heróis de guerra como Floriano Peixoto e Deodoro da Fonseca, que viriam a proclamar e consolidar a República, assim como tantos outros nomes que hoje batizam ruas, praças e cidades em todo o país, tais quais General Osório, General Polidoro, Marechal Câmara, Marquês do Herval, Francisco Otaviano e tantos outros. “O Exército ganhou expressividade política, a ponto de formular uma agenda de reformas que transcendia reivindicações corporativas. Falavam da abolição da escravatura, de industrialização, de proteção alfandegária, do soerguimento das classes médias, da restrição eleitoral e da purificação das instituições políticas. Aqui há algumas semelhanças com os militares do século XX”, compara o organizador de Diário do Conde d’Eu – Comandante em chefe das tropas brasileiras em operação na República do Paraguai .

Substituto do Duque de Caxias, o Conde d’Eu assumiu a chefia das tropas num momento em que as forças adversárias já estavam praticamente subjugadas, restando a missão principal de capturar o ditador paraguaio Francisco Solano López. Portanto, já não eram tão frequentes os embates diretos contra as derradeiras tropas de Solano López, que não passavam de pelotões maltrapilhos e que chegaram a recrutar crianças  para pegar em armas.

Na entrevista, o autor Rodrigo Goyena Soares conta um pouco sobre o trabalho de pesquisa, além de suas impressões a respeito da Guerra do Paraguai e do contexto político brasileiro na segunda metade do século 19.

Quais revelações ou novidades o diário de campanha do Conde D’Eu acrescenta à historiografia da Guerra do Paraguai?

Em primeiro lugar, o diário nos permite questionar — e muito! — as acusações historiográficas que se fizeram contra o Conde d’Eu sobre supostas atrocidades que ele teria cometido. As versões mais apaixonadas sustentam que o príncipe-consorte teria ordenado, tanta na Batalha de Peribebuí quanto na de Campo Grande, degolas de oficiais paraguaios e promovido carnificinas contra mulheres e crianças. O que sobressai do diário, com o confronto de outras fontes disponíveis no Arquivo Histórico do Museu Imperial, em Petrópolis, é que, nos momentos mais tensos de combate corpo a corpo, o Conde d’Eu ficava na retaguarda. Somente quando o embate cessava, ele ia ao cenário de conflito e encontrava aquilo que é característico das guerras: excessos e mais excessos. O próprio príncipe escreveu a seu sogro, o Imperador Pedro II, lamentando dois episódios, especificamente. O da Batalha de Peribebuí, no qual os oficiais Vitorino e Tibúrcio teriam degolado seus homólogos paraguaios e, ainda, o de Campo Grande, em que as tropas brasileiras enfrentaram crianças paraguaias disfarçadas de adultos e carregando armas obsoletas. Talvez pudéssemos imaginar que as cartas fossem artifício do Conde d’Eu, para esconder atos pouco nobres. Mas essa hipótese tampouco se sustentaria porque, em primeira instância, não seria exatamente fácil esconder esses fatos e, ainda, para alguém que solicitou participar da guerra reiteradamente, com vistas a angariar popularidade para si e para a Coroa, a prática de degolas não seria a melhor maneira de constituir as bases de um terceiro reinado. Como se não bastasse, há ainda episódios posteriores, a partir dos quais também se acusou o Conde d’Eu de atrocidades militares. Com o diário, fica claro que o príncipe sequer estava presente nessas ocasiões. Estava em outras frentes de ação militar. Do ponto de vista mais social e menos militar, o diário é igualmente rico. Com ele, descobrimos como era a vida nos acampamentos e como os estigmas sociais e raciais da época se embrenhavam nas relações entre soldados e oficiais. O diário nos dá também a percepção do cheiro dos acampamentos, do cansaço pelo qual passavam os soldados e, em suma, das expectativas e das frustrações que marcaram aqueles homens.

Em que condições o senhor descobriu o diário de campanha? Por que razões permaneceu por tanto tempo desconhecido?

É um grande mistério porque o diário estava disponível há décadas no Arquivo Histórico do Museu Imperial. Talvez esse esquecimento se deva ao fato que o arquivo não está na rota clássica dos pesquisadores, que tendem a se concentrar no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília. Para ser honesto, tampouco tinha consciência da importância do arquivo para quem pesquisa o Império do Brasil, até que uma edição da hoje extinta Revista de História da Biblioteca Nacional — espero que volte à tona, logo! — mencionou a existência do diário. Fui imediatamente a Petrópolis e encontrei muito mais do que o diário. Diria que em torno de 60% das fontes que usei na minha tese de doutorado vieram de Petrópolis. Portanto, quem é do Império — como dizemos entre historiadores — deve mesmo ir ao Museu Imperial.

Qual imagem ficou do príncipe consorte após a Guerra? A leitura do diário reforça ou rechaça essa visão?

Ficou uma imagem muito negativa. O príncipe foi acusado não somente pelas supostas atrocidades militares. Também foi taxado de francês que falava português com sotaque, de surdo, de carola e de mesquinho. Dizia-se, às vésperas da queda do Império, que o Conde d’Eu era proprietário de cortiços na Corte — isto é, no Rio de Janeiro — que alugaria às camadas populares por preços pouco módicos. Nada disso se sustenta. Na verdade, o que houve foi uma imensa campanha republicana de perseguição à figura do Conde. Se houvesse terceiro reinado, pensavam os republicanos, o Conde d’Eu teria grande voz e vez na condução dos negócios públicos: era preciso, então, sufocar qualquer popularidade que tivesse ou que viesse a ter. Um republicano radical chamado Silva Jardim lançou uma verdadeira cruzada contra o Conde, nos meses que antecederam à Proclamação da República. Em junho de 1889, o Conde d’Eu empreendeu uma viagem pelas então províncias do Norte e do Nordeste, com o objetivo de fazer propaganda para o ainda possível terceiro reinado. Silva Jardim o acompanhou, promovendo comícios republicanos nas cidades em que o Conde passava. Inclusive, Silva Jardim chegou a propor a pena capital contra o Conde, caso ele viesse a resistir à Proclamação da República. Ou seja, os estigmas que hoje ainda marcam a figura do Conde d’Eu, em boa medida, foram obra dos republicanos, constituída tanto durante o Império quanto República adentro.  O diário, me parece, é um ótimo ponto de partida para recontar a história do Conde, que, não por acaso, é até hoje um personagem pouco conhecido do público especializado e não especializado.

Em ao menos duas passagens, o príncipe descreve que as balas e granadas inimigas passaram zunindo o pelotão que estava sob seu comando. Nestas ocasiões, ele descreve que teve de agir rispidamente para assumir a rédea do próprio cavalo. Passa a impressão de que o príncipe estava ali quase como um fantoche. O que o senhor acha dessa leitura?

Não acho que a palavra fantoche seja a melhor, embora o momento em que o Conde d´Eu esteve à frente das tropas não tenha sido o de Osório ou o de Caxias. No final de 1868, Assunção estava praticamente tomada, e ficou claro, já no começo de 1869, que a guerra, a partir dali, seria tão somente uma caçada a Solano López, ditador do Paraguai. A atitude em relação às rédeas do cavalo era próprio da participação de príncipes, reis ou imperadores em combates. Preservava-se a figura real, por razões naturais: a perda de um monarca não era igual a perda de um oficial. No caso do Conde d’Eu, a possibilidade de um ferimento grave ou, quem sabe, de ser fatalmente atingido colocaria em xeque a descendência imperial. Era constantemente preservado, portanto. Casos diferentes eram os de Osório e de Caxias, as outras duas principais lideranças imperiais durante a guerra. Eles participaram do embate corpo a corpo porque eram oficiais. Mas, ainda assim, não era a regra. A perda de um oficial como Osório ou Caxias poderia significar grave desmoralização das tropas. Eram riscos a serem evitados.

O Conde d’Eu assumiu o comando das tropas no lugar do Duque de Caxias num momento em que as tropas inimigas estavam praticamente arrasadas. Qual papel o príncipe consorte desempenhou efetivamente no front?

Pois bem, voltando ao que disse anteriormente, não usaria o termo fantoche, porque o príncipe não foi um general de papel. É verdade que a guerra estava praticamente vencida — e por isso o Imperador autorizou a ida do genro ao front —, mas Solano López ainda estava em fuga. No diário, ficam claros os desafios militares de penetrar um território desconhecido à procura de um inimigo resvaladio. O príncipe ficou um ano, praticamente, em busca de Solano López. Portanto, o papel do Conde d´Eu foi de perseguição, muito mais do que de grandes manobras napoleônicas.

Logo que a Guerra eclodiu, o Conde d’Eu expressou o desejo de se juntar às tropas e recorreu ao sogro insistentemente para que fosse enviado ao front. Por que seu pedido foi inúmeras vezes negado?

Essa é uma pergunta cuja resposta não está no diário, mas no artigo introdutório que acompanha o livro. Recorri a um variado leque de correspondências entre o Conde d’Eu, o Imperador e os políticos do Império, para entender as razões dessas recusas. Não são poucas. Dizia-se que o príncipe consorte poderia perecer em combate, que poderia contrair enfermidade, que não tinha a experiência militar de outros oficiais brasileiros, que provocaria desunião entre a Argentina e o Brasil tendo em vista os desentendimentos entre Mitre, o presidente argentino, e Osório. Caso esses desentendimentos persistissem com o Conde no comando das tropas brasileiras, haveria riscos para a estabilidade da Tríplice Aliança. Isso entre outras tantas razões. Mas a verdade é que havia uma clara tensão entre liberais e conservadores. Eram os conservadores, especialmente no Conselho de Estado e, depois, na chefia do gabinete imperial, que se opunham à participação do Conde no conflito. Em imensa medida, porque sabiam da proximidade entre o Conde e os liberais menos radicais. O André Rebouças queria fazer do Conde uma espécie de Joaquim Nabuco avant la lettre, incitando-o a levar adiante a emancipação dos escravos. O Conde chegou, inclusive, a rascunhar um projeto de lei para alforriar o ventre cativo. Para os conservadores mais emperrados, se o Conde trouxesse os louros da vitória, não haveria bons augúrios para o refreamento da questão servil. Para eles, o melhor era optar por Caxias, uma figura tanto militar quanto civil e, sobretudo, um conservador de mão cheia.

Ao nomear o Conde d’Eu comandante das tropas quando a guerra já se encaminhava para um desfecho, D. Pedro II pretendia pavimentar o terreno para o terceiro reinado, com Isabel, sua filha no trono. A estratégia fracassou. Por quê?

Sem dúvida. O Imperador não perdeu de vista que fazer do Conde d´Eu o derradeiro herói de guerra, aquele que traria os louros da vitória, seria maneira eficaz de dar popularidade ao genro e pavimentar o terreno, como você diz, para o terceiro reinado. Não deu certo, em boa medida, devido à campanha republicana de difamação, da qual antes falamos, mas também ao ofuscamento progressivo do príncipe. Ao terminar a guerra, o Conde d´Eu assumiu lugar de destaque no Exército, não só devido à posição hierárquica, mas também pela quantidade de propostas que formulou para a reorganização do Exército. Buscava, em primeira instância, atender aos anseios da corporação, que se politizava cada vez mais. E o fazia, também, por intermédio de sua condição de Conselheiro de Estado. O problema é que campanha de difamação ao Conde d´Eu não chegou apenas no final do Império, mas imediatamente após a guerra. Os liberais radicais, que não eram os liberais moderados com os quais o Conde d´Eu se correspondia, tornaram-se rapidamente republicanos… e a figura do príncipe era monárquica, portanto. Para os radicais, era preciso abafar imediatamente a popularidade do príncipe consorte. E o fizeram mediante a imprensa e, inclusive, mediante manifestações públicas. Trato desse tema em minha tese de doutorado, que diz respeito – ainda que não exclusivamente – aos veteranos da Guerra do Paraguai.

Houve intensa disputa política entre diferentes grupos que pretendiam colher os louros da vitória na guerra. Qual grupo se beneficiou efetivamente naquele primeiro momento?

Diria que nenhum deles, e disso falo também em minha tese de doutorado. Nenhum grupo conseguiu cooptar as Forças Armadas, especialmente o Exército. Os republicanos não as ganharam, longe disso. Naquela altura, a República não era vista como alternativa para alcançar as reformas na corporação. Não era sequer uma real hipótese para a caserna. Os liberais moderados tampouco venceram a querela do regresso dos veteranos ao Império. Não conseguiram derrubar o gabinete conservador do Visconde de Itaboraí, e o Exército, em que pese a adesão dos oficiais inferiores aos liberais, não estava disposto a respaldar uma posição de força contra os conservadores. Os conservadores, enfim, não lograram neutralizar as Forças Armadas, que, após a guerra, adensaram suas pressões por reformas corporativas. Pior, eram donos de um governo impopular, como ratifica o fiasco do Templo da Vitória, que foi a principal comemoração oficial após o conflito e cuja imagem integra o livro. Ou seja, de alguma forma ou de outra, foi o Exército o grupo que mais se beneficiou naquele primeiro momento: passava a ser um dos principais centros de atenção política. Não por coincidência, a caserna, daí em diante, passou por um processo de politização crescente.

De que forma a guerra influenciou no processo que redundou na Proclamação da República?

Influenciou imensamente. O término da Guerra foi uma espécie de divisor de águas: marcou o auge, mas também o começo do declínio da monarquia. E isso se deveu à entrada das Forças Armadas, de forma muito mais expressiva do que anteriormente, na política nacional. Os veteranos retornaram ao Império marcados por expectativas, mas encontraram frustrações. Foi nessa tensão entre expectativas e frustrações que se constituiu um grupo alternativo aos partidos do Império, que se queria partido também, embora não no sentido eleitoral. Era o Exército. Os veteranos pagaram o tributo de sangue e, no retorno, passaram a exigir as compensações. A medida que não vieram à baila, o Exército ganhou expressividade política, a ponto de formular uma agenda de reformas que transcendia reivindicações corporativas. Falavam da abolição da escravatura, de industrialização, de proteção alfandegária, do soerguimento das classes médias, da restrição eleitoral e da purificação das instituições políticas. Aqui há algumas semelhanças com os militares do século XX, pode-se perceber. Não à toa, os militares que fizeram a República eram veteranos do Paraguai: Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Benjamin Constant, para citar apenas alguns. Mas essa é uma outra história, que estou agora escrevendo, como segundo volume do doutorado.

Fonte: http://www.blogdaeditorarecord.com.br/2017/09/15/diario-do-conde-deu-organizacao-de-rodrigo-goyena-soares/

 

 

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