O GLOBO – Django e Lincoln

Django e Lincoln

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José Miguel Wisnik

 

A combinação dos dois filmes, que tratam de maneiras muito diferentes da mesma coisa, parece dizer em linguagem cifrada e óbvia de carta enigmática: um negro na Casa Branca

Que “Django livre”, de Tarantino, e “Lincoln”, de Spielberg, estejam ao mesmo tempo em cartaz deve ser uma dessas coincidências sintomáticas em que, por obra do acaso objetivo, uma questão ao mesmo tempo muito atual e muito antiga vem à tona. A questão atual é a polarização da sociedade norte-americana, que a divide e paralisa em impasses políticos agudos. A questão antiga é o correspondente histórico dessa polarização e seus fantasmas: a escravidão e a Guerra Civil, que se ligam na origem e no fim (acabar com a guerra acabando com a escravidão, diz o filme de Spielberg, foi uma obra de manipulação política, pura e suja, suja e pura, de Lincoln). A combinação dos dois filmes, que tratam de maneiras muito diferentes da mesma coisa, parece dizer em linguagem cifrada e óbvia de carta enigmática: um negro na Casa Branca.

É evidente que Tarantino ataca o escravismo em “Django livre” como atacou o nazismo em “Bastardos inglórios”, explodindo-os literalmente com requintes de prazer. Mas eu acho que a explosão final de “Bastardos inglórios” dá a chave para entender a explosão final de “Django”: Hitler, com pele viscosa de serpente e cabelo englostorado, é metralhado, com truques de cinema, dentro do cinema em que os nazistas se compraziam em assistir aos seus próprios filmes e à sua própria visão da História. No final, o lábil e sinistro poliglota nazista que quer bandear-se para o lado vencedor (o mesmo extraordinário Christoph Waltz que faz em “Django” o ventilado e maquiavélico caçador de recompensas) é escalpelado por um matuto americano esperto e é marcado com uma suástica na testa, como uma espécie de vitória das insígnias do cinema americano contra as insígnias do nazismo e seu cinema.

Em resumo, é o cinema que é concebido por Tarantino, nesses filmes, como uma arma quente numa guerra declarada de valores. Valores normalmente defendidos com táticas humanistas são convertidos numa estratégia de ataque. Tiroteios, pistolas apontadas em loop, banhos de sangue e explosões finais (do estado maior nazista e da casa grande sulista) fazem parte de uma descarada e catártica afirmação do poder do imaginário contra as organizações opressivas, afirmação que seria opressiva, também ela, se não fosse permeada de um humor inteligentíssimo e hilariante.

É essa arma, o cinema, que se volta agora, em “Django livre”, para o coração de uma nação armada e marcada pela divisão racial, tomando um gênero clássico do imaginário americano, o faroeste, mas besuntado de spaghetti e de mitologia wagneriana, para aplicá-lo, com consequências extravagantes e profundas, sobre os horrores da escravidão. Um escravo do Sul é comprado, pouco antes da Guerra Civil, por um negociante de recompensas do Norte que o faz seu auxiliar na busca lucrativa de procurados pela lei. A dupla bem-sucedida acaba associando-se na missão amorosa de libertar a mulher do ex-escravo de uma fazenda de algodão que é o reino da crueldade escravista ilimitada. Em meio a isso, o protagonista negro faz jus a todos os poderes mirabolantes que já bafejaram desde os heróis do Velho Oeste a Siegfred, com direito à hilária coreografia do cavalo na cena final, o que soa ao mesmo tempo engraçado e sóbrio, como uma obra de justiça histórica frente às violências terríveis que sabemos ser historicamente reais.

Imagino o efeito disso sobre pessoas como o professor americano que me dizia se sentir pessoalmente afrontado por uma grande antologia panorâmica do jazz que era predominantemente negra. Por outro lado, os politicamente corretos que rejeitam o uso contínuo da palavra “nigger”, de forte inflexão racista, para se referir aos negros, no filme, como se acreditassem piedosamente que uma realidade é superada pela sua supressão do vocabulário, seja qual for o contexto. Em “Django livre” “nigger” é a marca verbal que condensa todas as violências, sua presença na boca dos personagens que a falam é a confirmação da violência que está nas imagens e nos personagens, e faz parte, portanto, do combate. Para usar com precisão termos nossos conhecidos, é um tabu que Tarantino transforma em totem, com força liberadora, porque lhe inverte o sinal sem recalcá-lo.

Jamie Foxx, o ator protagonista, entendeu isso, em entrevista ao GLOBO, ao dizer que Tarantino tem sangue negro, no sentido de que sabe vir a ser um, e que não precisou ser judeu para fazer “Bastardos inglórios”. Vir a ser para não servir. Spike Lee não acredita nisso, e entende a passagem do holocausto escravista pelo gênero western spaghetti como aviltante. Não aceita a possibilidade de que perspectivas diferentes e inesperadas levem a abrir um clarão surpreendente e contundente sobre o já dito.

Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/django-lincoln-7468787

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